A bota abandonada
Stalimir Vieira
Essa é a história do pé direito de uma bota velha que vivia
abandonada no galpão de um sítio. Mas a gente fica pensando: por quê só um pé
da bota? Onde foi parar o outro? A bota abandonada sabia muito bem o que
aconteceu. Às vezes, ela acordava no meio da noite e lembrava daquele final de
tarde, em que o dono do sítio vinha voltando do trabalho, debaixo de chuva, e
pisou num prego, que furou a bota e o pé esquerdo dele. Deu grito de dor, tirou
a bota com raiva e jogou longe. E veio pulando num pé só até o galpão.
Chegando, descalçou o outro pé e o deixou lá. Nunca mais se interessou por
aquele pé da bota. Afinal, para quê serve uma bota sozinha, sem o seu par?
Então, a partir desse dia ela ficou ali, sozinha, ainda suja de barro, sem nunca
mais sair para a rua nem ter alguém com quem conversar. Muito diferente do
tempo em que tinha a sua companheirinha e as duas saiam juntas nos pés do dono
cantando uma para a outra: um, dois, um dois, um dois...
A bota solitária estava lembrando disso certa manhã, quando
escutou abrirem a porta do galpão. A luz do sol iluminou tudo como há muito
tempo ela não via, pois ninguém mais tinha aparecido por ali.
Ficou prestando atenção e percebeu que entrava uma família: a
mãe, o pai e duas crianças, uma menina e um menino. Pela conversa entre eles,
ficou sabendo que tinham comprado o sítio. Ficou assustada, ao imaginar que
esses novos moradores, ao descobrirem que ela era uma bota sem par,
provavelmente iam jogá-la fora. A família se aproximou e a bota percebeu que
todos tinham calçados novos.
O pai e o filho usavam tênis e a mãe e a filha usavam
sandálias. Logo notou o olhar que esses calçados fizeram para ela. Bem
diferente do olhar da outra bota, sua companheira, sempre tão amiga e
carinhosa. Estes eram diferentes, olhavam de lado, com desdém, até com um
pouquinho de nojo. Escutou quando uma sandália da menina falou para um tênis do
menino:
-
Olha
essa bota, que esquisita, toda suja de barro.
O tênis respondeu, dando risada:
-
É
mesmo, dá até para sentir o chulé.
Quando ele falou isso, o outro tênis do menino e os tênis do
pai deram muita risada. As sandálias da menina e da mãe que não tinham escutado
direito, perguntaram:
-
O
que foi, do que vocês estão rindo tanto?
Uma sandália da menina falou:
-
Dessa
bota horrível aí. Onde foi parar o par dela?
-
Hum,
acho que deve ser tão burrinha que se perdeu no caminho e foi parar no meio do
mato – Respondeu um tênis do pai e todos deram risada juntos outra vez, até as
sandálias que, dessa vez, tinha escutado.
Dá pra gente imaginar a tristeza da bota, escutando isso
tudo. Ficava pensando de onde saíram esses calçados, que pareciam tão frágeis,
tão despreparados para andar por um lugar como aquele, mas que se comportavam
como se fossem os mais fortes do mundo.
Depois de dar uma volta pelo galpão, a família caminhou em
direção à porta para sair. A bota percebeu nos pés deles que os tênis e as
sandálias ainda cochichavam, dando risadinhas, enquanto olhavam para trás. E se
sentiu ainda mais triste.
Depois do jantar, a família se dividiu nos quartos do sítio.
Como ainda não tinham trazido todos os móveis, a menina e seu irmão ficaram no
mesmo quarto. Mas talvez não seja só por isso. Quem sabe, os pais achassem que na
primeira noite seria bom as crianças fazerem companhia uma para a outra.
Afinal, o sítio ficava no meio do mato e elas iam escutador ruídos diferentes,
a que não estavam acostumados. E foi isso mesmo o que aconteceu. Demoraram a
dormir. Primeiro, porque uma coruja piou perto da janela. Depois, porque os
sapos coaxaram. E, ainda, porque um cavalo com insônia resolveu correr pelo
terreno e ainda dar umas relinchadas. Cada barulho era um susto. Como estavam
juntos acabavam um acalmando o outro. Finalmente, adormeceram. Já era bem de
madrugada quando uma sandália da menina cutucou um tênis do menino:
-
Ei,
tá dormindo?
-
Não.
Tô com uma ideia.
-
Ideia?
Eu também.
-
Ir
lá no galpão zoar a bota?
-
Isso
mesmo. Vamos?
Então, o pé direito da sandália e o pé direito do tênis
saíram do quarto com todo o cuidado para não fazer barulho. Quando chegaram na
porta que dava para a rua, o tênis deu um pulo e empurrou a maçaneta. A
sandália aproveitou que abriu uma fresta e ficou segurando para a porta não
fechar outra vez. Assim, saíram e viram que a noite estava bem clara por causa
da lua que tinha aparecido depois de uma chuvarada. Saltando num pé só foram
andando na direção do galpão. A sandália de vez em quando dava um gritinho
quando sentia que pisava no chão molhado e o tênis, no caminho, ainda deu umas
topadas numas pedras. Enfim, chegaram na porta do galpão. A ideia era fazer do
mesmo jeito que tinha feito para sair da casa. Só que a porta do galpão estava
trancada com cadeado. Não tinha como entrar por ali. Tiveram que dar a volta
por fora do galpão até encontrar uma janela. Logo acharam uma que alguém tinha
esquecido aberta.
Pularam para a beirada da janela. Com a luz da lua iluminando
o interior do galpão, foi fácil ver a bota jogada num canto, sempre sujinha de
barro seco e riscada de espinhos por causa da vida que levou, carregando seu
dono pelo meio do mato. Os dois se cutucaram bem satisfeitos pela esperteza de
terem conseguido chegar ali. Então, a sandália sussurrou:
-
Ei,
bota sujinha, tá dormindo?
E o tênis emendou:
-
Há
quanto tempo você não toma um banho?
Os dois acharam muito engraçada a pergunta.
A bota continuava em silêncio. Não entendia porque aqueles
dois estavam tão interessados em incomodá-la. Afinal, ela não tinha feito
nenhum mal a eles. Resolveram perturbá-la só porque ela era diferente deles?
Isso não era justo. Mas a sandália e o tênis continuaram. Primeiro foi a
sandália que perguntou:
-
Ei,
bota sujinha. Onde está o seu par?
-
Será
que fugiu com uma bota mais limpinha?
E deram muita risada outra vez com esse comentário do tênis.
A bota se sentia cada vez mais humilhada com tanta maldade.
Será que não ia conseguir ter mais paz com a chegada dessa família? Estava
assim, com um nó na garganta, quase chorando, quando escutou o coaxar de um
sapinho que morava no galpão.
O sapinho tinha ouvido a conversa toda e não estava gostando
nada do que a sandália e o tênis estavam fazendo. Resolveu levantar e, aos
pulinhos, se aproximou da janela. Grudou os pezinhos na parede e começou a
subir. Quando chegou bem perto, ficou prestando atenção na conversa. Os dois
continuavam com as maldades:
-
Bota
sujinha, sabia que vão jogar você no lixo?
-
Isso
mesmo. Hoje mesmo escutei a mãe da minha dona falar. Ela disse: amanhã mesmo
vou dar um fim naquela bota velha.
E voltaram a dar gargalhadas, como se isso fosse a piada mais
engraçada do mundo.
O sapinho estava ficando muito bravo. Do lado de fora, no
chão, o barro também tinha acordado com aquela conversa. E também não estava gostando
nada do que a sandália e o tênis faziam com a bota. Por isso, começou a se
juntar bem debaixo da janela. A sandália e o tênis, que não tinham percebido
nada, continuavam achando ótimo ficar provocando a bota.
-
Bota
sujinhaaaa... bota sujinhaaa...
-
Acho
bom você ir embora daí. A gente não quer se misturar com você.
Isso foi a gota d’água pro sapinho. Que conversa mais idiota!
Como podem fazer isso com a pobre da bota?! Foi, então, que ele pulou da parede
até a janela e caiu bem em cima da sandália. Ao sentir os pezinhos gelados e
molinhos do sapo, a sandália tomou um susto tão grande que escorregou, se
agarrou no tênis e os dois acabaram caindo juntos, sabe onde? No meio do barro
que tinha se juntado, bem molhado e fofo, debaixo da janela. Afundaram até a
metade e ficaram presos ali. No começo, ficaram em choque, sem entender nada.
Depois, bateu um desespero neles. Não conseguiam se mexer. Além disso, a noite
tinha ficado escura porque o barro tinha combinado com uma nuvem que passava
por ali de ela cobrir a lua bem na hora em que os dois caíssem. Então,
afundados no barro e no meio da escuridão, começaram a gritar:
-
Socorro,
bota, socorro!
-
Tira
a gente daqui! Você está acostumada a andar no barro, a gente não!
Que situação, hein? Pois é, aqui
termina a primeira parte da história. Daqui pra frente você vai escolher o
final que prefere entre essas duas opções:
Primeira opção de
final.
A bota escutou os dois gritando e quase não acreditou que
podiam ser a mesma sandália e o mesmo tênis que até agorinha estavam zoando com
ela. Chamando de sujinha, dizendo que ela ia ser jogada fora. Então, pensou que
os dois estavam tendo o castigo merecido por serem tão maus e falou baixinho:
-
Bem
feito.
Virou para o lado e dormiu.
No dia seguinte, a família voltou ao galpão. A menina e o
menino tinham levado uma bronca dos pais porque um pé da sandália dela e um pé
do tênis dele tinham desaparecido durante a noite. Os pais tinham certeza de
que os filhos tinham aprontado alguma coisa.
Ao darem uma volta por fora do galpão e passarem debaixo da
janela, confirmaram o que estavam pensando: um pé da sandália e um pé do tênis
estavam afundados no barro, imundos.
A mãe foi logo falando:
-
Tá
vendo só? Eu sabia!
E o pai completou:
-
Pronto.
Uma sandália e um tênis perdidos. Pode jogar fora.
Como os filhos tinham muitas sandálias e muitos tênis nem se
importaram que aqueles fossem para o lixo. E os dois pés de calçados ficaram
abandonados ali. A chuva forte que caiu durante a semana fez com que afundassem
ainda mais no barro até desaparecerem.
Segunda opção de final
A bota escutou os dois gritando e quase não acreditou que
podiam ser a mesma sandália e o mesmo tênis que até agorinha estavam zoando com
ela. Chamando de sujinha, dizendo que ela ia ser jogada fora. Ouvir os dois
agora, gritando desesperados, fez com que percebesse o quanto, na verdade, eles
é que eram uns coitados.
Estavam se achando tão valentes para atacar quem não fez nada
pra eles e agora morriam de medo, ao enfrentar uma situação difícil de verdade. Sim, tinham razão quando diziam que ela
estava acostumada a andar no barro e eles não. Mas os dois só perceberam o
valor disso agora, quando precisaram. Antes, a bota era só uma bota suja de
barro, que eles desprezavam. Agora, por ela ser uma bota suja de barro, perceberam
que só ela tinha experiência para ajudá-los a sair do barro onde estavam
enterrados. Não é interessante que, dependendo da situação, a gente pode
enxergar o outro de maneiras diferentes? Aquilo que parecia um defeito tinha
virado uma qualidade e o que parecia inútil de repente poderia ser a salvação
deles. Como a bota tinha um coração bom, resolveu pular até a janela e ver o
que poderia fazer. Eles continuavam
gritando:
-
Bota,
botinha, nos ajude, não seja má!
-
A
gente nunca mais vai falar com você daquele jeito.
Então, a bota pulou para fora da janela e caiu no barro bem
ao lado deles. Afundou até a metade mas continuou firme e forte porque era uma
bota grande, acostumada a andar na lama. Então, falou:
-
Pulem
para dentro de mim, que eu vou levar vocês até a beira do lago para se lavarem.
Depois vocês voltam para casa.
Muito sem graça, pularam para dentro dela e ficaram bem
quietinhos até chegar no lago. Lá, a bota deixou a sandália e o tênis, porque o
lago ficava perto da casa. Eles começaram a se lavar. Quando olharam para trás,
a bota já tinha ido embora. Voltaram para casa em silêncio, muito envergonhados.
A bota, o sapo e o barro logo caíram no sono, bem tranquilos.
Pronto. Agora escolha o final que
prefere e escreva o motivo porque fez essa escolha.