segunda-feira, 13 de abril de 2020


Era uma vez


                                                                                       Cassio Zanatta



      Sabe quando você gosta de jogar bola, mas se cansa de só jogar bola? Ou joga tanto que não está mais a fim? Ou quando você, que é doido por chocolate (quem não?), come até ficar lambuzado e enjoar, e daí não pode nem ver chocolate na frente?

     Então.

     Foi o que aconteceu com o “era uma vez”. É, aquele mesmo, o “era uma vez” que começa todas as histórias desde que o mundo é mundo. De repente, ele não queria mais ter sido. Cansou. Deu.

     De tanto “era uma vez 3 porquinhos”, “era uma vez um boneco de madeira”, “era uma vez uma rainha que se achava a mais bonita do reino”, chegou uma hora que ele desistiu de começar sempre do mesmo jeito, não quis mais viver se repetindo e largou o emprego, quis ir pescar no Lago Profundo ou surfar no Havaí.

     Quem não gostou muito foi o “num reino distante”. Você já reparou que ele é a próxima coisa a ser dita? “Era uma vez… num reino distante…” Pois é. Se não tinha mais “era uma vez”, ele não tinha como existir. Se não tem o início da história, não tem continuação.

     Tentaram arrumar um outro jeito de começar. Foi fácil não. Primeiro tentaram o “aconteceu num país longe pra burro”, depois o “tudo começou num lugar mais longe que Taubaté”. Não era a mesma coisa. Ficava faltando o começo que logo dizia que ali vinha uma história. As três palavrinhas que faziam a gente pular no colo da mãe ou no sofá da sala, ao lado do vô.

     Agora, chateado, chateado mesmo, ficou quem sempre acabava a história, a frase que fechava tudo, a última antes do “Fim”. Você sabe, aquela: “e viveram felizes para sempre”. Depois do era “uma vez… num reino distante…” vinha a história mesmo, daí que aparecia uma fada, uma bruxa, um cara meio pateta, talvez um dragão (que às vezes era do mal, às vezes do bem) e um bicho sábio que sempre falava. Até que, depois de acontecer um monte de coisa duelo, feitiços, luta de espadas, heroísmo tudo acabava no “e viveram felizes para sempre”. Se o final tivesse um príncipe e uma princesa que se casavam, então, não tinha como acabar de outro jeito.     

     Até que fizeram lá um Encontro Mundial De Quem Gosta De Inventar História e deram um jeito: ficou resolvido que não ia mais ter começo, quer dizer, a coisa já ia começar pegando. Nada de “era uma vez… num reino distante…”, o bicho já pegava fogo de cara. Mesmo o “e viveram felizes para sempre” acharam que estava na hora de mudar. Porque, vamos combinar, não é sempre que é verdade. Vai que eles têm um filho que é o pior aluno da classe. Ou a princesa, depois de beijar o sapo que virou príncipe, pega uma doença que faz ela virar mosca de três cores. Sei lá, vai saber…

     Até que um sujeito lá, quem nem gostava tanto de contar história, sugeriu “e viveram felizes um tempinho”. Mas, poxa, os personagens já sofriam tanto a história inteira, não mereciam ser felizes só esse tantinho. Então veio outro metido a engraçado com “e viveram felizes e comeram perdizes”, mas, apesar da rima bonitinha, ninguém gostou.

     Finalmente, resolveram: a última frase antes do “Fim” seria criada pelo leitor, ou por quem ouvia a história. Ele que, depois de ouvir ou ler toda a trama, iria pensar num final, e assim, cada leitura ia acabar de um jeito diferente. Se você quisesse que, por exemplo, a Branca de Neve viesse pegar uma praia no Brasil e virasse mulata, tudo bem. Ou que Gepetto, numa noite de muito, muito frio, resolvesse acender a lareira com o Pinóquio (fim triste esse, né?), estava feito.

     Aliás, isso nem seria novidade: sabia que muitas histórias, criadas há séculos, foram mudando ao longo do tempo? Sério. Cinderela, por exemplo: sabia que, na história original, as irmãs cortavam os dedos dos pés para que coubesse o sapatinho de cristal? Pois acharam isso meio assustador e suavizaram a coisa. Sabe o Gato de Botas? No começo, ele era cruel, ruim que só vendo, só depois do ano 2000 que o Gato ficou um cara legal.

    E todos os livros do mundo foram devolvidos para apagarem os finais que antes existiam. E deixaram um lugar em branco pra gente inventar como acabava. Teve gente que abusou: nem escrevia nada, para toda vez que lesse, vir com um final diferente.

     Enfim: era uma vez o “era uma vez”. Baubau. Foi parar num museu, perto das múmias e outras coisas antigas, entre o “num reino distante” e o “viveram felizes para sempre”.

     Agora eu já posso dizer “Fim”?


Meu telhado
                                                                                                                                                                                                                                              Lúcio Vieira*

Plim
Uma gota caiu em mim
Poc
Desceu pelo meu cangote
Quando chove é assim,
Pinga na lata e na panela.
Um barulho sem fim
Esta é minha casa, tem tanto furo no teto
que não dá pra contar com os dedos da mão
1,2,3,4,5,6,7,8,9,10,11
Passo rápido o pano no chão, lavo tudo com água e sabão
Quando o sol aparece, deixa o piso todo pintado
E o meu quarto inteiro se aquece
Fico pulando, no sobe e desce, contando dobrado, 
 2,4,6,8,10
até que caio sentado.
Telha quebrada, explica meu pai
Quem quebrou? Pergunto ligeiro
Bicho papão!
Respondo então: aqui em casa não entra não
E me escondo debaixo do colchão.
Papai no telhado, trocando telha.
Na próxima chuva não vai ter plim nem vai ter ploc
Sem pingos na lata, nem manchinhas de sol no chão a brilhar
O bicho papão pode vir me pegar.
Vou falar para o papai parar de trocar.

* Professor de química do Instituto Federal de Ensino do Rio Grande do Sul.


sábado, 11 de abril de 2020


A velhinha dos mariscos e o menino na gaiola

                                                                                              Stalimir Vieira


Uma velhinha vinha andando pela beira do mar, carregando a sua cesta de mariscos. Caminhava olhando pra baixo, procurando mais algum, quando o vento trouxe pra dentro do seu ouvido, as vozes de dois homens discutindo. Levantou a cabeça e olhou lá na frente. E viu que havia mesmo dois homens falando alto e mexendo muito as mãos e os braços. Quanto mais perto ela chegava, mais a voz deles ficava forte. Um era um pouco gordo e baixo e tinha os cabelos e a barba bem escuros; o outro não tinha barba nem cabelo, sua cabeça brilhava no sol. Mas o que mais chamou a atenção dela foi outra coisa, realmente muito estranha. Ela quase não acreditou quando viu, pois no meio deles estava uma grande gaiola e dentro dela, um menino bem assustado. Então, a velhinha chegou bem perto e, sem largar o cesto de mariscos, perguntou:
-       Ei, o que esse menino está fazendo dentro da gaiola?
O homem mais gordo fez uma cara engraçada, curvou o corpo e espiou dentro da gaiola. Ao se voltar outra vez para a velhinha respondeu:
-       Que eu saiba, não está fazendo nada. – E soltou uma gargalhada.
A velhinha fez uma cara de quem não tinha achado graça nenhuma na piada. Então, colocou o cesto no chão e se aproximou dele:
-       Então, vou mudar a pergunta. Por que esse menino está preso nessa gaiola?
-       Adivinha, dona. Pra não fugir, ora. – E soltou outra gargalhada.

Ela ficou pensando “mas que sujeito abusado” e começou a pensar um outro jeito de perguntar. Só que aí o outro homem, o careca, resolveu falar:
-       Vamos parar de conversa e continuar o nosso negócio.
-       Negócio?! Que negócio?! – Perguntou a velhinha.
O barbudo nem deu bola pra pergunta dela e já foi falando pro outro:
-       Eu já falei que ou você leva o menino todo ou não leva nada.
-       E eu já falei que não quero todo, só preciso de meio quilo.

A velhinha, ao ouvir isso, deu um pulo pra trás. Como assim? Queria comprar só meio quilo do menino? Mas a discussão continuava:
-       Não, não e não! Só vendo a peça inteira.
-       Que tal me vender um quilo, então? Pago bem! Duas moedas!

O gordo torceu a boca, coçou a barba, deu uma olhadinha na gaiola, voltou a encarar o outro. Antes que ele respondesse, a velhinha perguntou para o careca:
-       Mas para que você quer comprar um quilo do menino?
Ele fez uma expressão de quem não gostou nadinha de ver que ela se metia no seu negócio. Mesmo assim respondeu.
-       Preciso dar o almoço da minha filhota.
E abriu a boca de um grande saco branco e mostrou o bico da águia que carregava.
A velhinha tomou outro susto. Essa não! Pensou ela. Que horror! Precisava fazer alguma coisa. Então, falou, olhando para o barbudo:
-       Eu acho que esse negócio não vai ser bom para você.
-       Ora, como sabe? O que a senhora entende disso?
Ela pensou rápido e trouxe o cesto de mariscos para o meio deles.
-       Eu vendo mariscos há muitos anos.
-       Ora, mariscos, mas isso é muito diferente. Agora, não me atrapalhe mais que eu preciso terminar esse negócio.
-       Pois eu já lhe mostro que não tem nada de muito diferente!
Apanhou um marisco do cesto e levantou bem junto da cara dele.
-       Está vendo esse marisco?
-       O que é que tem esse marisco? É só um marisco. – Desdenhou o gordo.
-       Então, olhe. – Ela abriu a concha e dividiu o marisco em duas partes – Você acha que se eu vender só essa metade do marisco, alguém vai querer comprar essa outra metade?
O homem torceu a boca como da outra vez, coçou a barba e tornou a olhar para a gaiola. O careca que queria comprar logo um quilo do menino não estava gostando nada daquela conversa. E foi logo falando:
-       Ei, ei, ei, essa velha tagarela só está nos fazendo perder tempo. Vamos logo fechar o negócio que a minha filhota está ficando com fome.
Mas o gordo continuava com o olhar fixado nos dois pedaços do marisco que a velhinha segurava nas mãos. O careca se inquietava.
-       Olhe aqui, essa é a minha última oferta! Três moedas por um quilo do menino!
Os olhos do barbudo saíram dos mariscos e arregalaram sobre as moedas que o careca mostrava e ele abriu um sorriso cheio de ambição. Quando tentou levar a mão para apanhá-las, a velhinha se pôs na frente.
-       Pois a minha oferta é: o meu cesto de mariscos inteiro pelo menino inteiro!
Agora os olhos do barbudo se arregalaram para o cesto. A velhinha apanhou um bocado deles e ofereceu:
-       Veja só. Todos inteirinhos.
O careca apanhou o saco com a águia e colocou nas costas:
-       Pra mim já chega! – E saiu batendo os pés com força na areia.
O barbudo abriu a gaiola e deixou o menino sair.
-       Pronto, senhora, aí está o menino. Agora, dê pra cá os mariscos.
A velhinha despejou os mariscos na sacola do homem e ficou com o cesto vazio. Quando se afastaram, o menino comentou:
-       E agora? A senhora ficou sem os seus mariscos...
Ela colocou o cesto no ombro, pegou a mão dele e apontou para a imensidão da praia à frente:
-       O que mais tem aqui é marisco pra gente catar. E você, é único.
Então, saíram os dois pela beira do mar, catando mariscos. Em pouco tempo o cesto já estava cheio outra vez.

sexta-feira, 10 de abril de 2020


A bota abandonada
                                                                                

                                                                                                              Stalimir Vieira


Essa é a história do pé direito de uma bota velha que vivia abandonada no galpão de um sítio. Mas a gente fica pensando: por quê só um pé da bota? Onde foi parar o outro? A bota abandonada sabia muito bem o que aconteceu. Às vezes, ela acordava no meio da noite e lembrava daquele final de tarde, em que o dono do sítio vinha voltando do trabalho, debaixo de chuva, e pisou num prego, que furou a bota e o pé esquerdo dele. Deu grito de dor, tirou a bota com raiva e jogou longe. E veio pulando num pé só até o galpão. Chegando, descalçou o outro pé e o deixou lá. Nunca mais se interessou por aquele pé da bota. Afinal, para quê serve uma bota sozinha, sem o seu par? Então, a partir desse dia ela ficou ali, sozinha, ainda suja de barro, sem nunca mais sair para a rua nem ter alguém com quem conversar. Muito diferente do tempo em que tinha a sua companheirinha e as duas saiam juntas nos pés do dono cantando uma para a outra: um, dois, um dois, um dois...
A bota solitária estava lembrando disso certa manhã, quando escutou abrirem a porta do galpão. A luz do sol iluminou tudo como há muito tempo ela não via, pois ninguém mais tinha aparecido por ali.
Ficou prestando atenção e percebeu que entrava uma família: a mãe, o pai e duas crianças, uma menina e um menino. Pela conversa entre eles, ficou sabendo que tinham comprado o sítio. Ficou assustada, ao imaginar que esses novos moradores, ao descobrirem que ela era uma bota sem par, provavelmente iam jogá-la fora. A família se aproximou e a bota percebeu que todos tinham calçados novos.
O pai e o filho usavam tênis e a mãe e a filha usavam sandálias. Logo notou o olhar que esses calçados fizeram para ela. Bem diferente do olhar da outra bota, sua companheira, sempre tão amiga e carinhosa. Estes eram diferentes, olhavam de lado, com desdém, até com um pouquinho de nojo. Escutou quando uma sandália da menina falou para um tênis do menino:
-       Olha essa bota, que esquisita, toda suja de barro.
O tênis respondeu, dando risada:
-       É mesmo, dá até para sentir o chulé.
Quando ele falou isso, o outro tênis do menino e os tênis do pai deram muita risada. As sandálias da menina e da mãe que não tinham escutado direito, perguntaram:
-       O que foi, do que vocês estão rindo tanto?
Uma sandália da menina falou:
-       Dessa bota horrível aí. Onde foi parar o par dela?
-       Hum, acho que deve ser tão burrinha que se perdeu no caminho e foi parar no meio do mato – Respondeu um tênis do pai e todos deram risada juntos outra vez, até as sandálias que, dessa vez, tinha escutado.
Dá pra gente imaginar a tristeza da bota, escutando isso tudo. Ficava pensando de onde saíram esses calçados, que pareciam tão frágeis, tão despreparados para andar por um lugar como aquele, mas que se comportavam como se fossem os mais fortes do mundo.
Depois de dar uma volta pelo galpão, a família caminhou em direção à porta para sair. A bota percebeu nos pés deles que os tênis e as sandálias ainda cochichavam, dando risadinhas, enquanto olhavam para trás. E se sentiu ainda mais triste.

Depois do jantar, a família se dividiu nos quartos do sítio. Como ainda não tinham trazido todos os móveis, a menina e seu irmão ficaram no mesmo quarto. Mas talvez não seja só por isso. Quem sabe, os pais achassem que na primeira noite seria bom as crianças fazerem companhia uma para a outra. Afinal, o sítio ficava no meio do mato e elas iam escutador ruídos diferentes, a que não estavam acostumados. E foi isso mesmo o que aconteceu. Demoraram a dormir. Primeiro, porque uma coruja piou perto da janela. Depois, porque os sapos coaxaram. E, ainda, porque um cavalo com insônia resolveu correr pelo terreno e ainda dar umas relinchadas. Cada barulho era um susto. Como estavam juntos acabavam um acalmando o outro. Finalmente, adormeceram. Já era bem de madrugada quando uma sandália da menina cutucou um tênis do menino:
-       Ei, tá dormindo?
-       Não. Tô com uma ideia.
-       Ideia? Eu também.
-       Ir lá no galpão zoar a bota?
-       Isso mesmo. Vamos?

Então, o pé direito da sandália e o pé direito do tênis saíram do quarto com todo o cuidado para não fazer barulho. Quando chegaram na porta que dava para a rua, o tênis deu um pulo e empurrou a maçaneta. A sandália aproveitou que abriu uma fresta e ficou segurando para a porta não fechar outra vez. Assim, saíram e viram que a noite estava bem clara por causa da lua que tinha aparecido depois de uma chuvarada. Saltando num pé só foram andando na direção do galpão. A sandália de vez em quando dava um gritinho quando sentia que pisava no chão molhado e o tênis, no caminho, ainda deu umas topadas numas pedras. Enfim, chegaram na porta do galpão. A ideia era fazer do mesmo jeito que tinha feito para sair da casa. Só que a porta do galpão estava trancada com cadeado. Não tinha como entrar por ali. Tiveram que dar a volta por fora do galpão até encontrar uma janela. Logo acharam uma que alguém tinha esquecido aberta.
Pularam para a beirada da janela. Com a luz da lua iluminando o interior do galpão, foi fácil ver a bota jogada num canto, sempre sujinha de barro seco e riscada de espinhos por causa da vida que levou, carregando seu dono pelo meio do mato. Os dois se cutucaram bem satisfeitos pela esperteza de terem conseguido chegar ali. Então, a sandália sussurrou:
-       Ei, bota sujinha, tá dormindo?
E o tênis emendou:
-       Há quanto tempo você não toma um banho?
Os dois acharam muito engraçada a pergunta.
A bota continuava em silêncio. Não entendia porque aqueles dois estavam tão interessados em incomodá-la. Afinal, ela não tinha feito nenhum mal a eles. Resolveram perturbá-la só porque ela era diferente deles? Isso não era justo. Mas a sandália e o tênis continuaram. Primeiro foi a sandália que perguntou:
-       Ei, bota sujinha. Onde está o seu par?
-       Será que fugiu com uma bota mais limpinha?
E deram muita risada outra vez com esse comentário do tênis.
A bota se sentia cada vez mais humilhada com tanta maldade. Será que não ia conseguir ter mais paz com a chegada dessa família? Estava assim, com um nó na garganta, quase chorando, quando escutou o coaxar de um sapinho que morava no galpão.
O sapinho tinha ouvido a conversa toda e não estava gostando nada do que a sandália e o tênis estavam fazendo. Resolveu levantar e, aos pulinhos, se aproximou da janela. Grudou os pezinhos na parede e começou a subir. Quando chegou bem perto, ficou prestando atenção na conversa. Os dois continuavam com as maldades:
-       Bota sujinha, sabia que vão jogar você no lixo?
-       Isso mesmo. Hoje mesmo escutei a mãe da minha dona falar. Ela disse: amanhã mesmo vou dar um fim naquela bota velha.
E voltaram a dar gargalhadas, como se isso fosse a piada mais engraçada do mundo.
O sapinho estava ficando muito bravo. Do lado de fora, no chão, o barro também tinha acordado com aquela conversa. E também não estava gostando nada do que a sandália e o tênis faziam com a bota. Por isso, começou a se juntar bem debaixo da janela. A sandália e o tênis, que não tinham percebido nada, continuavam achando ótimo ficar provocando a bota.
-       Bota sujinhaaaa... bota sujinhaaa...
-       Acho bom você ir embora daí. A gente não quer se misturar com você.
Isso foi a gota d’água pro sapinho. Que conversa mais idiota! Como podem fazer isso com a pobre da bota?! Foi, então, que ele pulou da parede até a janela e caiu bem em cima da sandália. Ao sentir os pezinhos gelados e molinhos do sapo, a sandália tomou um susto tão grande que escorregou, se agarrou no tênis e os dois acabaram caindo juntos, sabe onde? No meio do barro que tinha se juntado, bem molhado e fofo, debaixo da janela. Afundaram até a metade e ficaram presos ali. No começo, ficaram em choque, sem entender nada. Depois, bateu um desespero neles. Não conseguiam se mexer. Além disso, a noite tinha ficado escura porque o barro tinha combinado com uma nuvem que passava por ali de ela cobrir a lua bem na hora em que os dois caíssem. Então, afundados no barro e no meio da escuridão, começaram a gritar:
-       Socorro, bota, socorro!
-       Tira a gente daqui! Você está acostumada a andar no barro, a gente não!


Que situação, hein? Pois é, aqui termina a primeira parte da história. Daqui pra frente você vai escolher o final que prefere entre essas duas opções:


Primeira opção de final.

A bota escutou os dois gritando e quase não acreditou que podiam ser a mesma sandália e o mesmo tênis que até agorinha estavam zoando com ela. Chamando de sujinha, dizendo que ela ia ser jogada fora. Então, pensou que os dois estavam tendo o castigo merecido por serem tão maus e falou baixinho:
-       Bem feito.
Virou para o lado e dormiu.
No dia seguinte, a família voltou ao galpão. A menina e o menino tinham levado uma bronca dos pais porque um pé da sandália dela e um pé do tênis dele tinham desaparecido durante a noite. Os pais tinham certeza de que os filhos tinham aprontado alguma coisa.
Ao darem uma volta por fora do galpão e passarem debaixo da janela, confirmaram o que estavam pensando: um pé da sandália e um pé do tênis estavam afundados no barro, imundos.
A mãe foi logo falando:
-       Tá vendo só? Eu sabia!
E o pai completou:
-       Pronto. Uma sandália e um tênis perdidos. Pode jogar fora.

Como os filhos tinham muitas sandálias e muitos tênis nem se importaram que aqueles fossem para o lixo. E os dois pés de calçados ficaram abandonados ali. A chuva forte que caiu durante a semana fez com que afundassem ainda mais no barro até desaparecerem.


Segunda opção de final

A bota escutou os dois gritando e quase não acreditou que podiam ser a mesma sandália e o mesmo tênis que até agorinha estavam zoando com ela. Chamando de sujinha, dizendo que ela ia ser jogada fora. Ouvir os dois agora, gritando desesperados, fez com que percebesse o quanto, na verdade, eles é que eram uns coitados.
Estavam se achando tão valentes para atacar quem não fez nada pra eles e agora morriam de medo, ao enfrentar uma situação difícil de verdade.  Sim, tinham razão quando diziam que ela estava acostumada a andar no barro e eles não. Mas os dois só perceberam o valor disso agora, quando precisaram. Antes, a bota era só uma bota suja de barro, que eles desprezavam. Agora, por ela ser uma bota suja de barro, perceberam que só ela tinha experiência para ajudá-los a sair do barro onde estavam enterrados. Não é interessante que, dependendo da situação, a gente pode enxergar o outro de maneiras diferentes? Aquilo que parecia um defeito tinha virado uma qualidade e o que parecia inútil de repente poderia ser a salvação deles. Como a bota tinha um coração bom, resolveu pular até a janela e ver o que poderia fazer.  Eles continuavam gritando:

-       Bota, botinha, nos ajude, não seja má!
-       A gente nunca mais vai falar com você daquele jeito.

Então, a bota pulou para fora da janela e caiu no barro bem ao lado deles. Afundou até a metade mas continuou firme e forte porque era uma bota grande, acostumada a andar na lama. Então, falou:
-       Pulem para dentro de mim, que eu vou levar vocês até a beira do lago para se lavarem. Depois vocês voltam para casa.
Muito sem graça, pularam para dentro dela e ficaram bem quietinhos até chegar no lago. Lá, a bota deixou a sandália e o tênis, porque o lago ficava perto da casa. Eles começaram a se lavar. Quando olharam para trás, a bota já tinha ido embora. Voltaram para casa em silêncio, muito envergonhados. A bota, o sapo e o barro logo caíram no sono, bem tranquilos.


Pronto. Agora escolha o final que prefere e escreva o motivo porque fez essa escolha.